sexta-feira, 3 de dezembro de 2010
A moça do carro azul,
Era a semana que antecedia o Natal. Os carros entupiam as ruas, todos querendo aproveitar um sinal verde, uma vaga para estacionar, chegar mais cedo ao shopping.
Eu era apenas mais uma no trânsito, quase sem olhar para os lados, concentrada em alguma tarefa inadiável. Mas de repente o que era movimento e pressa à minha volta
parou. Estava fazendo o retorno numa grande avenida quando passou por mim um carro azul com uma moça na direção. O vidro dela estava aberto e ela não parecia ter nada a esconder: chorava. Não um choro à-toa. Ela chorava por uma dor aguda, uma dor de respeito, era um transbordamento. Passou reto por mim e eu concluí meu retorno, e quis o destino que a próxima sinaleira fechasse e alinhasse nossos dois carros, eu ao volante do meu, atônita, ela ao volante do dela, desmoronando.
Eu deveria ter ficado na minha, mas era quase Natal, e quase todos estão tão sós, quase ninguém se importa com os outros, e antes que trocasse o sinal, abri a janela
do meu co-piloto - sem nenhum co-piloto - e perguntei: "Você precisa de ajuda?".
Ela estava com a cabeça apoiada no encosto do banco, olhando em frente pró nada, chorando ainda. Então virou a cabeça lentamente para mim - pensei que iria dizer
para eu me preocupar com a minha vida - e disse serenamente: "Já vai passar". E quase sorriu. Eu respondi "fica bem", fechei o vidro e avancei meu carro um pouquinho pra frente, para desalinhar com o dela e deixá-la livre dos meus olhos e da minha atenção. Passei o resto do trajeto tentando adivinhar se ela havia rompido uma relação de amor, se havia perdido um filho recentemente, se havia recebido o diagnóstico de uma doença grave, se havia discutido com o marido, se estava com saudades de alguém, se estava ouvindo uma música que a fazia lembrar de uma época terrível - ou sensacional. O que a fazia chorar quase ao meio-dia, numa avenida tão movimentada, sem nem mesmo colocar uns óculos escuros ou fechar o vidro?
Que desespero era aquele sem pudor e por isso mesmo tão intenso?
Garota, desculpe invadir com minha voz a sua tristeza. Era quase Natal e eu não agüentei ver você naquele quase deserto, num universo à parte, incompatível com
a quase euforia com que recebemos as viradas, as mudanças, a esperança de olhos mais secos. Faz uma semana, lembra? E agora falta quase nada pra gente abraçar a
ilusão de que tudo vai ser novo. Que seja mesmo, especialmente pra você. Feliz 2006.
28 de dezembro de 2005
(Do livro Doidas e Santas)
Eu era apenas mais uma no trânsito, quase sem olhar para os lados, concentrada em alguma tarefa inadiável. Mas de repente o que era movimento e pressa à minha volta
parou. Estava fazendo o retorno numa grande avenida quando passou por mim um carro azul com uma moça na direção. O vidro dela estava aberto e ela não parecia ter nada a esconder: chorava. Não um choro à-toa. Ela chorava por uma dor aguda, uma dor de respeito, era um transbordamento. Passou reto por mim e eu concluí meu retorno, e quis o destino que a próxima sinaleira fechasse e alinhasse nossos dois carros, eu ao volante do meu, atônita, ela ao volante do dela, desmoronando.
Eu deveria ter ficado na minha, mas era quase Natal, e quase todos estão tão sós, quase ninguém se importa com os outros, e antes que trocasse o sinal, abri a janela
do meu co-piloto - sem nenhum co-piloto - e perguntei: "Você precisa de ajuda?".
Ela estava com a cabeça apoiada no encosto do banco, olhando em frente pró nada, chorando ainda. Então virou a cabeça lentamente para mim - pensei que iria dizer
para eu me preocupar com a minha vida - e disse serenamente: "Já vai passar". E quase sorriu. Eu respondi "fica bem", fechei o vidro e avancei meu carro um pouquinho pra frente, para desalinhar com o dela e deixá-la livre dos meus olhos e da minha atenção. Passei o resto do trajeto tentando adivinhar se ela havia rompido uma relação de amor, se havia perdido um filho recentemente, se havia recebido o diagnóstico de uma doença grave, se havia discutido com o marido, se estava com saudades de alguém, se estava ouvindo uma música que a fazia lembrar de uma época terrível - ou sensacional. O que a fazia chorar quase ao meio-dia, numa avenida tão movimentada, sem nem mesmo colocar uns óculos escuros ou fechar o vidro?
Que desespero era aquele sem pudor e por isso mesmo tão intenso?
Garota, desculpe invadir com minha voz a sua tristeza. Era quase Natal e eu não agüentei ver você naquele quase deserto, num universo à parte, incompatível com
a quase euforia com que recebemos as viradas, as mudanças, a esperança de olhos mais secos. Faz uma semana, lembra? E agora falta quase nada pra gente abraçar a
ilusão de que tudo vai ser novo. Que seja mesmo, especialmente pra você. Feliz 2006.
28 de dezembro de 2005
(Do livro Doidas e Santas)
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