quarta-feira, 17 de novembro de 2010

vontade,

“volta que eu te cuido e não te deixo morrer nunca”

Acordei no susto. Coração acelerado, disparado, descompassado, esmagado de medo. O palpitar do músculo me fez abrir os olhos para a manhã quase azul ou cinza – vermelha talvez. Numa dessas noites de setembro ou de outubro - não me recordo - sonhei que você tinha morrido, e por isso o desespero. Foi realmente assustador. Antes e apesar de você morrer – no sonho – aquela de longe era a melhor alucinação – e verdade - dos últimos meses. Você me aparecia calmo, com sua postura de homem maduro, com seus lábios contraídos em um pequeno sorriso, vestido todo de branco, lindo -, quase como me apareceu na primeira vez, no primeiro sonho que tive com você. Dessa vez foi mais difícil chegar perto de ti, não que houvesse alguma barreira humana nos separando, mas porque tu me parecia completamente intocável – talvez tenha sido isso que você evitou tanto, não é? Queria ser tocado, sentido, mas havia o medo e tantas outras coisas, eu sei. Afundando-se cada vez mais no irreal, típico sujeito digno de se levantar uma estátua em alguma praça em um lugar remoto - intocável. Mas naquele momento você era apenas você, sem nenhum artificio. E eu precisava – mais do que nunca – te tocar, te sentir. Desejava com todas as minhas forças que ao estender o braço, e depois os dedos lentamente, eu conseguisse te alcançar. Ridiculamente então perguntei: "Posso te tocar? Preciso saber se você é mesmo real, se voce realmente existe". Eu precisava te conhecer antes de voce ir e você só podia ir se me conhecesse, assim me parecia. E tu com sua face tranquila me olhava como se visse em mim alguma de suas personagens inquietas e perdidas. Fechando os olhos então voce assentiu, feito um mestre antigo, parecendo aquelas coisas de zen budismo, de um cara que sabe o que faz - ou não. Totalmente real, entendi assim que senti seu cheiro de dores. Eu te olhava fixamente como se esperasse entender tudo o que tinha dentro de você. Ah! Se eu pudesse te virar do avesso e saber todos os motivos que tinham chamado tanto minha atenção. E eu sabia, embora revestido de exageros e ficção, eu sabia o quão dolorido eram seus dias – porque os meus também eram. E sua dor era a minha e de muita gente, suas verdades abriam a tampa dos meus sufocos e criava – sem querer – novas angustias, mas que eram tão suas que eu não ousaria tomar conta. Queria saber a razão de todas as fugas, de todas as palavras cortadas, de todo o sangue derramado nas linhas – mas mesmo te perguntando você apenas respondia: é a vida baby, apenas a vida, um dia de merda, outro dia de hortelãs e violetas. A vida te fez assim, plenamente feliz em sua tristeza, e por ter te feito assim acabou também por me transformar em um poço sem fundo, mas completo e sólido. Só por você existo, porque sou apenas mais uma de suas invenções, sou descrita em seu olhar – agora brilhante – com minha nudez repentina, de querer tirar tudo que é acúmulo desnecessário em mim, de não querer deixar a xícara transbordar. E tu a favor desse excesso, dessas borboletas feias, dessas ervas daninhas, dessa dor peneirada e transformada em coisas que só você sabe dizer, só você e ninguém mais. Tudo estava perfeito, eu te contava tudo e declamava com vontade todos os versos que eu pacientemente decorei. Não sei se você gostou de ouvir da minha boca todo o seu escuro, todo o seu breu claro como luz. Deve ter sido difícil, tanto tempo apenas dizendo, esperado, se entregando. Sim, eu quis dizer que me afastava porque vezenquando você me doía muito, mas não disse, não me soava necessário. E tudo era natural, você de carne e osso feito eu, tão frágil meu Deus, vontade de te cuidar, de te pegar no colo, de dizer que te cuido, de dizer que posso ser sua história feliz, de dizer que não deixo que te matem, que te façam sofrer tanto. Tenho certeza que você colocaria as verdades em frases perfeitas e talvez não acabaria em uma história tão feliz assim, mas seria apenas minha e sua. Eu pegaria sua mão e não partiria sem dizer nada naquele ônibus, eu estaria além do ponto, te mandaria cartas bonitas e chegaria perto, seria o dragão a morar contigo, jogaria fora meus sapatinhos vermelhos pra te dizer que Paris pode sim ser uma festa, que eu não me importaria se houvesse um corpo de homem que por coincidência seria um corpo de homem igual ao seu, e faria tudo que ainda nem sei como funciona. Se tudo isso acontecesse você pararia não é? Por isso nada aconteceu. Não chegou a ser. O sonho estava prestes a se tornar pesadelo, se tornar o motivo do desespero amanhecido. Estava sentada ao seu lado, você meditava ou olhava o horizonte, te via apenas de perfil e respeitava seu silêncio, porque o conhecia. E foi nesse momento que as coisas mudaram. Não sei como aconteceu, mas quando me vi estava debruçada no chão com apenas um pensamento estampado na cabeça, algo como um: isso não pode acontecer, tive tão pouco tempo. E como numa epifania eu vi que aquele carro que passava diante de nós não era apenas um carro, mas sim pessoas da realidade tentando acabar com sua fantasia. Que aquele metal preto não era apenas um metal preto, mas uma arma. E que aquela mancha vermelha bem no meio da sua testa – agora vista de frente – não era apenas uma mancha daquelas, era sangue, um sangue de um tiro silencioso e mortal. Eu pensava: não é assim que você morre, não tem que ser assim, justo agora. Sai correndo, de covardia – mais do que de susto. Pulei os portões, as grades. Apesar do primeiro instinto de própria salvação, eu precisava avisar alguém, o rádio, a tv talvez, dizer que você foi assassinado, dizer que. O coração acelerado, disparado, descompassado, esmagado de medo. Pensei antes de abrir os olhos: pelo menos te conheci antes de você ir e você me conheceu, podendo ir assim em paz. Como se eu fosse importante, seu diálogo bem mais construído, como se você quisesse ter aparecido pra mim em sonho – pela segunda vez. Levantei da cama na manhã azul ou cinza – vermelha talvez, caminhei lentamente até a máquina de escrever, e você estava ali, vivo, óculos no rosto, concentrado nos papéis, contraindo os lábios em um pequeno sorriso, me chamando pra ver o que tinha acabado de escrever, mas dessa vez eu não ousei chegar perto, eu nem ao menos ousaria te tocar – não depois de tudo.

(Aninha)

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